"O comboio chegou, finalmente. Entramos e sentamo-nos a meio da carruagem. A minha mãe, sentada do lado da janela, continuava atenta observando o exterior como um soldado na mais importante missão. O comboio inicia a sua marcha e, depois de sair da estação, quando mergulhamos na escuridão do vazio exterior que não conseguíamos observar, sinto que a minha mãe começa a abandonar aquele estado de ansiedade que carregava. Pousa o seu braço por cima dos meus ombros e puxa-me para ela. Seguimos a viagem assim, encostadas num abraço quente, deixando Coimbra para trás.
Ela soluçava baixinho, eu
sentia o seu peito, as suas mãos e as suas pernas a tremer. Mas que poderia eu
dizer-lhe? Queria dizer-lhe que ia correr tudo bem. Que íamos tomar conta uma
da outra e nada nos ia separar. Mas não o disse. Quantas palavras ficam por
dizer, ocultas na intensidade de um mimo ou de um carinho. Quantas palavras
ficam por falar, por chorar e por sentir. Queria que as palavras me tivessem
saído dos lábios, fazendo vibrar o tímpano e aquecer o coração de minha mãe. - Oh
minha mãe, como queria dizer-te que te amo. - Mas não disse. Fiquei ali, já sem
sono, enquanto sentia o seu abraço, quase sem força.
Na carruagem seguia um
senhor, de barba farta cobrindo-lhe o rosto, que nos observou atentamente
quando entrámos. Talvez alertado pelo rosto roxo da minha mãe. Mas nada disse,
nada perguntou. Desviou o olhar, silenciando o evidente. Silenciando a dor que
viu no rosto desfigurado daquela mulher. Talvez silenciando até a própria dor
de quem não quer ver. Quando passou o pica, este pediu o bilhete e parou olhando
para a minha mãe, que manteve os olhos baixos e a cara escondida pelo cachecol
que trazia ao pescoço e que tentava esticar até aos olhos. Ele nada disse, nada
perguntou e seguiu.
Sempre que o comboio parava
a minha mãe ficava em estado de alerta, como um bom soldado. -E que bom soldado
eras tu minha mãe.- Levada para uma guerra que não era a dela, foi a principal
força da sobrevivência e da bravura. Enquanto lhe foi possível e, apenas uma
vez não lhe foi possível, a última.
Nas paragens do comboio a
respiração da minha mãe tornava-se mais rápida e mais silenciosa e o seu abraço
ganhava mais força. O seu coração batia com tanta força que eu conseguia
senti-lo no meu ombro encostado ao seu peito. O estado de alerta era disfarçado
pelo rosto que resguardava, baixando-o e direcionando-o para a janela. Mas,
depois do comboio retomar a sua marcha, ela voltava a perder a força no abraço
e a soluçar baixinho."
Do livro "O Melhor está para vir"
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Texto: Susana Silva
Imagem: pixabay
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