A bola corria lentamente pelas pedras da calçada, deformada
pela sua própria natureza. Uns pezitos descalços seguiam no seu encalço. Os
calções muito curtos deixavam a descoberto os joelhos marcados. À paragem da
bola um momento de concentração que travou as gargalhadas que o antecedera. O
calcanhar eleva-se ligeiramente, para dar o balanço necessário à força que
tinha que ser exercida no pontapear daquela bola. Ia na velocidade máxima,
quase uma velocidade cruzeiro que teria feito chegar a bola às estrelas e, no
seu regresso, trazer o brilho infinito nos olhos daquela menina que, parada junto
à beira da estrada, sorria para mim, na ânsia da minha conquista. Mas aquele
piso enviesado colocou-se à frente do meu pé. Não sei se senti mais dor ou
vergonha. A bola jazia no mesmo local, nem o vento a tinha feito mover-se. Eu
caído no chão chorava agarrado ao meu dedo do pé. A menina, com as mãos na
boca, correu a chamar a minha mãe. Gritava eu e gritava ela. Vês este dedo sem
unha? Foi nesse dia que a perdi. Nunca mais cresceu. Aliás como a ponta do dedo
arrancada com pouca meiguice. Mas foi um dia feliz. A menina nunca mais me
largou. Primeiro por compaixão, depois cresceu a amizade e, por fim, o amor.
Hoje somos o que somos graças aquela cabeça de dedo arrancada. A vida é
tramada. Chaga-nos na pele para nos encantar no coração.
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Texto: Susana Silva
Imagem: pixbay
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