Nas escolas as
resoluções do ano novo passam por greves de professores e assistentes
operacionais… mais greves… em tempos tão difíceis, pensarão muitos. Mas o que muitos
não sabem é que há um abismo que se vai abrindo, há vários anos, nas escolas em
que estas, juntamente com os seus profissionais e alunos, deixaram de ser
valorizadas.
Diz-se que é
necessária uma aldeia para educar uma criança. E é! É necessária uma estrutura sólida
e robusta de educação, valorizada por todos os seus agentes para que alguns não
fiquem sozinhos nesta difícil, mas extraordinária, função de educar uma
criança.
Sou professora há
18 anos, sempre trabalhei com afinco e convicção na educação e formação de
crianças, jovens e adultos. Servi os mais variados projetos desde as “novas oportunidades”
aos cursos de educação e formação, do ensino regular ao noturno, passando pelos
cursos profissionais e piefs. Lecionei mais de 30 disciplinas diferentes. Já
passei por várias reformulações de programas escolares, de nomenclaturas, estruturas
educativas, de calendários educativos, de estratégias de funcionamento e
avaliação nas escolas e das escolas e dos seus profissionais, sempre com convicção
e afinco.
Há dias numa das
minhas turmas levantou-se a conversa em sussurro entre um grupo de alunos sobre
quanto é que eu ganharia. Eu que passava por perto, a acompanhar os trabalhos
de grupo fiquei a ouvir. Dizia um:
- … deve ganhar para
aí o salário mínimo!
- … achas? - respondia o outro.
- Então não vês
que é substituta… - afirmava o primeiro
Mas a colega
insistia: - mas ela deve estar para aí no 3º escalão…
- O meu pai disse
que os substitutos não têm escalão. E ela é nova… deve ter para aí uns 30 anos.
Sorri-lhes quando,
aflitos, se aperceberam que eu estava mesmo ali a ouvir. Senti-lhes o
constrangimento e uma certa pena no olhar, enquanto os orientava, novamente
para as tarefas que lhes havia proposto. Não foi tudo verdade, não foi tudo
mentira. Não tenho 30 anos (mas confesso que gostei da análise), tenho 41 e até
estou nem estou muito bem para a idade. Sou professora há 18, com um horário
incompleto a substituir outra colega, tenho um contrato renovável mensalmente
até que que não seja mais necessária a substituição.
Dos colegas que
acabaram o curso comigo, a maior parte seguiu outros rumos profissionais, dos
que se mantiveram no ensino, poucos efetivaram. Eu, nem lá perto estou. Escolhi
não ser caracol de casa às costas pelo país, mas sou lesma que me arrasto por
escolas que, sendo relativamente perto de casa, me permitem manter perto da
família. Recebo pouco mais do que o salário mínimo. Tenho um horário de 14
horas letivas semanais, mas muitas são as semanas que trabalho mais do que 35
horas. Vou todos os dias da semana à escola dar aulas, ainda assim a segurança
social considera que trabalho apenas 18,5 dias por mês. Trabalho mais do que os
cálculos das tabelas pois faço o que tenho de fazer, adapto, crio e recrio
estratégias. Preparo-me e preparo materiais. Frequentemente nas minhas aulas
aplico atividades de relaxamento, de concentração, de pensamento lateral e
criativo. Às vezes brinco e rio, às vezes tenho vontade de chorar. Às vezes os
meus alunos chamam-me mãe e acredito que às vezes me chamem filha da mãe. Às
vezes sento-me com eles na escada a ouvir as suas dores e o seu choro, às vezes
clamo grandes e longos responsórios que eles não gostam de ouvir. Às vezes converso
com os encarregados de educação durante muito mais tempo do que o previsto para
um atendimento, na certeza de que, praticamente todos, fazem o que melhor podem
com os recursos que têm. Sei que temos crianças e jovens incríveis, famílias
fantásticas que se esforçam por sobreviver a vários níveis nos desafios que
lhes são colocados. Temos professores e assistentes operacionais excelentes… e
ainda assim, há um abismo nas escolas.
Sou muito feliz a
ser professora, não imaginam como sou feliz numa sala com alunos. Mas não tenho
muito orgulho em ser professora… esta estranha forma de vida… que me apaixona,
mas não me valoriza, não me considera nem me estima.
Conheço por
dentro as dificuldades das escolas, as suas falhas e fragilidades. Na sala dos
professores vejo pessoas cada vez mais envelhecidas, cansadas e lamuriosas e ainda
assim há um brilho que continua a perseverar nesta paixão de ensinar. É-nos
exigido cada vez mais, com menos recursos, mais motivação com menos valorização
e os resilientes (professores e assistentes operacionais) continuam como podem,
como conseguem, a persistir nesta missão de ser parte importante da aldeia que
vai educar cada criança. Há nas escolas quem muito trabalhe, com as suas falhas,
fragilidades e dificuldades, porque sabe que acima de si próprio está o propósito
de tecer o futuro. E dá tudo de si. Além da dor e do “Bojador”, ouvindo a tenebrosa
voz dos “Velhos do Restelo” sobre o seu labor continuam a incentivar, a inovar
e criar, a projetar, a reinventarem-se a si próprios e às suas estratégias, porque
sabem que nas suas mãos está o ensino dos filhos deste país. Como eu gostava
que todos pudessem entrar nas escolas e perceber o trabalho que lá é feito, a
criatividade, os projetos, as transformações, os colos, os abraços, o amor que
percorre aquelas salas… e ainda assim há um abismo nas escolas.
Dói-me ver que o
meu país investe tanto em alguns recursos humanos e os valoriza e indemniza e
recontrata e promove e, por outro lado, investe tão pouco naqueles que servem
as pessoas, como os professores, os assistentes operacionais, os médicos, os
enfermeiros e tantos outros que são o rosto e as mãos do investimento do estado
nas nossas pessoas.
Esta é a hora! É necessário
valorizar o nosso recurso mais valioso, que são a energia do passado, do
presente e do futuro, que são o querer, o sonho e a obra, que são a melhor
bolsa de ações que qualquer país pode ter. Nós! As pessoas. Os trabalhadores
dos serviços que não podem ser o parente afastado deste país que recebe uma pancadinha
nas costas na presença da comunicação social e é esquecido e ignorado o ano inteiro.
Esta é a hora! É
necessário valorizar a escola, os seus profissionais, o seu papel. Reconhecer-lhe
a razão da sua existência. É a hora de a aldeia se juntar, de exigir que se
invista na escola. Não há maior investimento que um país possa fazer do que
investir nos certificados dos seus mais valiosos tesouros, as pessoas, as
crianças e jovens. Estai certos de que é um investimento a longo prazo que não dará
prejuízos nem exigirá indeminizações. Não se pode exigir mais aos profissionais
da educação, que nos últimos anos viram carreiras congeladas; que para aceder a
escalões que lhes permite uma subida remuneratória têm de esperar numa lista
para que abram vagas; que são avaliados, não pelas suas competências mas pelas quotas disponíveis para cada nível de avaliação. Não se pode exigir mais aos
profissionais que não são valorizados mediante nenhum dos aspetos da sua vida
profissional. Não se pode exigir mais aos profissionais que têm de escolher, tantas
vezes, entre profissão e família, que percorrem quilómetros todos os dias para
dar aulas, que pagam duas casas (uma onde mora a família e outra perto da
escola onde lecionam). Que estão mergulhados em relatórios e grelhas e
documentos, pressionados por governantes que lavam as mãos, como Pilatos e por
uma sociedade que nem sempre consegue compreender as dores que a escola padece.
Não são dores de crescimento. São dores de encolhimento. Não há muita
felicidade nas escolas, os profissionais da educação chegam cabisbaixos e
descrentes do impacto do seu trabalho. E vão andando com dores físicas e emocionais
que arrastam até que possam dali sair para uma reforma… sem esperança numa
efetiva mudança. Os mais novos vão encontrando alternativas que lhes permitam
melhores condições de vida quer financeira ou mentalmente.
Esta é a hora! Se
a escola ou algum professor te marcou positivamente na tua vida, não podes
ficar calado. Se há um professor que foi importante para o teu filho, não podes
ficar calado. Se sabes que a escola é o banco de investimento no nosso futuro,
não podes ficar calado. Junta a tua voz à nossa. Pedimos uma escola mais justa
para todos. Com concursos justos, com incentivos à profissão, para atrair jovens
para a profissão, com regras justas que não mudem a cada ano e durante o mesmo
ano várias vezes. Queremos profissionais da educação valorizados, a escola
valorizada, os alunos valorizados. Queremos uma escola mais feliz, com mais
qualidade de vida.
É a hora! Ergue a
tua voz do nevoeiro que adensa em torno da escola e exclama, exige connosco. Faz
cartazes, bandeiras, fitas escritas, coloca-os na tua janela, nas escolas, em locais públicos, fotografa-os, publica-os
nas redes sociais. Envia mensagens, vídeos, fotografias públicas a defender a
escola, a mostrar que há profissionais incríveis que nunca desistem dela, dos
seus alunos. Mostra ao mundo que não estamos sós a defender a nossa escola.
Professores em luta também estão a ensinar.
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