Avançar para o conteúdo principal

Caixa de correio

Hão caixas que marcam as horas os dias e os anos, que contam cada segundo como uma existência única, que são confidentes e perpetuam as passagens dos que com elas se cruzam. Hão caixas únicas. Esta era uma dessas. Agora tombava envelhecida pelo tempo, poucos a notavam e ela não se fazia sobressair. Mas outrora fora esplendorosa e guardara segredos indesvendáveis.
Toim!!!! O barulho estridente fez o dono vir à janela.
- Mas que raio?!? - olhava tentando perceber o que acontecera.
- Mas quem é que mandou com a bola na caixa do correio?!? Rais parta a canalha!! - Os berros do alto da janela propagavam-se por toda a povoação.
A caixa do correio, novinha em folha, cheia de brilho e de brio, acabara de ser atingida por uma bola arremessada pelos jogadores que estreavam o pavimento novo da estrada. A pancada soltara parte da soldadura e a caixa debruçou-se como segurando-se a si própria numa gargalhada incontida.
- Oh Rosa!! Tu viste quem foi? - Inquiria desalentado pelo sucedido, o dono.
- Eu não. - respondia contendo o riso que a sua irmã não conseguiu reter.
- Ai se eu descubro quem foi….
A frase terminou com a ida para o interior. Nada aconteceria. Todos sabiam, que aquela voz grave rapidamente esqueceria o que aconteceu e estaria a distribuir bolachas Maria a quantos se sentassem na soleira da porta.
Este foi o primeiro dia do resto da vida desta caixa. Assistia frequentemente a partidas intensas de futebol jogadas no meio da estrada, com rasgões nos joelhos e gargalhadas à mistura.
- Anda para casa, que já é noite!! - gritavam as mães com os jantares já na mesa enquanto ouviam um rápido. “- vou já” ou “- já vou”. Tanto fazia porque o resultado era o mesmo. Quando a noite caísse e apenas a ténue luz pública iluminasse a rua. Essa seria a hora de ir para casa.
A caixa ansiava o nascer do dia e a agitação que se seguia. Com as crianças na escola, eram os adultos que, carregando molhos de erva à cabeça e canados com o leite para o posto do leite, iam marcando o passo dos dias. Ainda de manhã, vinha também o carteiro, o correio, como era chamado. Assobiando fazia-se notar e logo corriam para as caixas do correio os seus donos, Encontrando-as frequentemente vazias, de cartas, porque estavam bem cheia de vida. Da vida que, por fora, emanavam os que por elas passavam.
Com o chegar da tarde, as mulheres juntavam-se no fontanário. Com trajes escuros e olhos sábios lamentavam os dias atuais louvando os de outrora, lembrando as dificuldades e a rijeza do povo de outros tempos. Da sua janela o dono da caixa perscrutava atento. A sua alegria não passava despercebida, e as sonoras gargalhadas soltas faziam sorrir até o mais sisudo dos homens. Ao final da tarde a janela e as ruas esvaziavam-se para ouvir o terço no rádio. E a caixa também o ouvia.
Ao domingo era dia de romagem e a família e os muitos vizinhos daqueles dois velhotes seguia em fileira visitá-los, receber vida das suas histórias e da sua sabedoria. Muitos segredos ouviu aquela caixa, mas não os podemos contar, nem os sabemos, porque era uma boa guardadora.
Viu noivas saírem para casar, crianças a darem os primeiros passos e os primeiros tombos. Um dia viu até o nascimento de uma vitela, no curral que ficava de fronte a si. De vez em quando lá passava um carro e a criançada gritava “carro” e a bola parava e colocavam-se, uns de cada lado da estrada. Viu funerais, choro e desgraças. Viu sorrisos, alegrias e nascimentos. Foi uma caixa feliz.
Hoje, os donos já partiram, a criançada cresceu e deixou de jogar à bola. Até o pobre fontanário permanece quase esquecido no seu canto. Mas as memórias, essas, ninguém tira à caixa, que sorrindo continua a curvar-se, cumprimentando os que, por ali, passam. E são tantos, os que hoje passam, sem a ver, ser a olhar, sem a sentir. Mas esta caixa é um marco importante.
Da história.
Da vida.
Do povo.
Daquele povo.

Do meu povo. Da minha vida. Da minha história.

Comentários