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A mostrar mensagens de maio, 2020

Sonho

Na incessante correria dos dias deixámos de sonhar, os sonhos que tínhamos enquanto crianças e jovens e que nos faziam voar por entre as montanhas do medo e da angústia perderam-se e, hoje, esquecemo-nos de sonhar, já não sabemos sonhar. Temos em nós sonhos que não nos atrevemos a sonhar assoberbados pelas tarefas do dia a dia ou letárgicos na monotonia de outros. Deixamos para trás os nossos sonhos justificando, a nós próprios, que são inatingíveis e nos fariam gastar tempo e recursos tendo por base a velha máxima “quanto maior o sonho maior a queda”. Impomos à nossa vida o peso da seriedade que não permite a leveza do sonho… e tornamo-nos pele, ossos e músculos robotizados. Mas pode ser hoje o dia, em que, olhando sem medo para dentro encontremos o nosso velho sonho e frente a frente com ele deixemo-nos acreditar. Acreditar que sonhar faz parte da vida, que sonhar também é viver e que quanto maior o sonho maior a nossa resiliência para o perseguir. E que um sonho faz-se, ta

esta balada que te dou

Esta balada que te dou, cantada, bem baixinho ao ouvido, fala-te do quanto me fizeste sorrir, das lágrimas de felicidade que contei a teu lado. Lembras-te das caminhadas que fizemos na serra, dos domingos enrolados no sofá a ver filmes tontos, das vezes que te lia as histórias que mais gostavas e tu sorrias, porque me amavas? São lágrimas de saudade que rolam pelo meu rosto, ainda estás aqui, mas eu sei que vais partir. É a hora e o momento. Corre como corríamos pela praia sentindo a areia molhada e a água num vaivém. Vai meu bem. Vai… em breve irei ter contigo.   Agora que partiste, partiu contigo a minha balada e o meu coração dilacerado grita sem proferir nenhum som. As lágrimas de felicidade dão lugar a torrentes de lágrimas de desespero, como poderei viver sem ti? Quero partir contigo. Quero angustiar-me até não mais aguentar e a morte me levar, contigo.

a casa de bonecas

Dlim, dlão… A campainha da porta tocou e uns ouviram-se uns passinhos aproximarem-se. A porta abriu-se e a pequena figura surgiu com dois totós no alto da cabeça e lábios pintados, sardas no rosto e pestanas grossas e grandes. Uma saia de peito muito rodada onde se poderiam descobrir pelo menos três camadas de tecido, e uma camisola com mangas em balão. ― O que deseja? ― inquiriu com voz aguda que contrastava com o ar envelhecido e curvado do corpo que a libertava. ―É hora de almoço Dona Mimi. ― disse com paciência a Lurdes ― É menina Mimi. ―afirmou com aspereza ― hoje almoço em casa. ― Almoça em casa como, Mimi? ― Ora, vou ali à minha cozinha e preparo alguma coisa. Hoje não quero sair de casa. ― afirmou perentoriamente. E prosseguiu chamando a amiga com quem partilhava o espaço ― Tatá, já fizeste a sopa? De lá de dentro uma voz grave que se esforçava por ser mais aguda responde: ― já está pronta a sopa e a mesa posta. Lurdes colocou a mão na testa contendo uma g

A cavalo dado

Mesmo que a cavalo dado, nem tudo o que reluz é ouro. E não fosse o pássaro na mão a galinha enchia o papo. Depois o gato escaldado morreu de velho, porque quem tem olho é rei, mesmo que seja quem ri por último. Certo é que uma mão lava a outra e nenhuma atira pedras ao vizinho, apesar de ser tempo de guerra e o mal vir a caminho. No final, mais vale quem Deus ajuda do que quem conta um conto e depois quem fala muito põe o rebanho a perder e se vem o pastor põe-lhe uma vara na mão e vê se os outros baixam as orelhas. Para terminar, diz o roto ao nu que a galinha da vizinha é boa cozinheira, mas morreu solteira, porque a justiça tarda e a chuva fica até que fura. Disse-me que quem tudo quer não se recolhe depois de deitada e lava-se em casa, nem faz orelhas moucas às vozes de burro. Mas águas passadas e tudo fica bem porque ao bêbado e ao tolo põe-lhe Deus a mão por baixo.

meias no chão

A feira acabou E as meias ficaram no chão. M oradores hostis os deste largo E m alvoroço por um par de meias. I sso seria caso de jornal, A gora que tudo se ausentou. S eguiram presos pela polícia N os carros da patrulha, O que diziam é impronunciável. C alavam palavras bonitas, H á horas aflitas A quilo foi uma pancadaria. O ra agora, porque seria?

O sol nasceu

Aqui estou, deitado sobre este capim iluminado por um céu estrelado que admiro como se fosse a última vez. Talvez seja mesmo. A roupa encardida e ainda molhada colada ao corpo é o meu abrigo e a minha proteção nesta noite escura. A lua ausentou-se e permitiu um silêncio que consigo sentir, embora nos meus ouvidos este latejante zumbido que me faz temer até a leve brisa que faz dançar a mais fina erva. Inspiro profundamente e sinto o ar morno a entrar pelos meus pulmões o coração parece desacelerar e eu sinto-me em paz. Que vida feliz que vivi. Vou sentir a tua falta Amália, e dos teus fados chorados. Leve vento entrega este beijo que te dou colando-o ao rosto da minha mãe, ela vai saber. A manhã está para chegar e o meu destino prestes a mudar. Peço a Deus que tenha compaixão de mim, antes a morte que a captura. Lá vem ele, é o sol, porque não se demora? A noite que me protegia terminou, ouço já os passos que me procuram e sinto, encostado aos olhos, o cano que me ceifará

a fonte

A fonte secou E nada mais brilhou. Ficou a nascente sem parir E até a foz deixou de existir. No leito jazem os peixes moribundos E as algas encorrilham como seres de outros mundos. O sol torna as pedras do rio ardentes E na margem, bebedouros secos e vidas ausentes. Oh pérfida vontade de tudo teres e de em tudo estares Oh eterno poder que desejas ter sem querer Inundas o coração de tudo com a escuridão que de ti emana E tudo arde até se extinguir num ocaso silencioso, o fim. E tu… pacientemente vês a ruína que causaste De cigarro na boca, sentado na rocha Enquanto tudo sucumbe… E a fonte secou. E tudo morreu. E o tu sou eu.

Eu nasci à sexta feira

“Eu nasci à sexta feira, com barba e cabeleira, mais parecia um anticristo. Tarantantam…” Alfredo descia a ladeira de sachola ao ombro cantarolando e animando todos à sua passagem. ― Boa tarde, Ti Nel! ― dizia, enquanto respeitosamente levantava a boina axadrezada que trazia na cabeça. ― Senhor prior António, a sua bênção. ― fazendo uma vénia ao velho e barrigudo padre da aldeia. Eram assim os fins de tarde mais animados   em Piurça, uma aldeia no meio da serra, onde nem Judas passou para lá perder as botas. Os mais jovens haviam fugido para as grandes cidades, a maioria para o Porto, mas não Alfredo. Alfredo gostava da lavoura e habitava na casa que fora dos seus pais, Deus os tenha, cultivando uma porção de terra, que também lhe pertencia, junto ao rio. Juntava-se às merendas nos arredores, debaixo dos grandes carvalhos que por lá existiam em grande quantidade, e ajudava todos na aldeia em troca de uma sandes de presunto ou de umas rodelas de chouriço fumado. ― U

cadeira de três pernas

Era dia de mercado, o dia mais agitado da semana. A vila em peso, deixava os seus afazeres medievais para ir ao mercado trocar as suas moedas de bronze por produtos necessários à sua sobrevivência. Afonso seguia com os seus pais e com os três irmãos mais novos passando revista às fileiras de barracas que se amontoavam naquele descampado agora imensamente povoado. Grelos e nabos em todas as bancas, só de olhar e de lembrar o sabor amargo do nabo sentia-se nauseado. A mãe parou no ferreiro, precisava de uma nova foucinha que a dela partira durante a semana ao apanhar pasto para os animais. Enquanto esperava Afonso reparou num moço que amontoava cadeiras preparando-se para as vender. Fazia-o com afinco, mas desajeitado, mas o que mais surpreendeu Afonso é que as cadeiras só tinham três pernas. O vendedor coloca um letreiro que diz “10 moedas”… Afonso ficou boquiaberto, dez moedas era o que uma família de muito trabalho conseguiria angariar durante um mês. Riu-se com desdém do parv

Um texto sem a letra p

Exma. Senhora D. O_hélia Queiroz: Escrevo-lhe res_eitosamente, _or considerar que V. Ex.ª merecer todo o cuidado e é minha obrigação adverti-la _ara o risco que correis ao entregar o vosso coração aquele ignóbil indivíduo, e meu querido amigo, Fernando _essoa. Bem sei que ontem, V. Ex.ª es_erou _or ele no sítio do costume, vi-a a deambular _ela entrada da Livraria Inglesa e vi o crescente ar de tristeza e desolação que sentíeis em vosso coração. Mais desilusão encontrareis se insistires nesse ó_io que não é mais do que uma _erversão física que vos é corres_ondida. Aceitai o meu modesto aviso, de alguém que bem conhece o _atrão do vosso coração. Ontem, durante a es_era, Fernando estava embriagado nos cálculos astrológicos que nos últimos tem_os o têm tornado num alquimista dos números numa busca louca _elo inatingível. Não duvideis das minhas intenções, mas não acrediteis mais no dócil discurso que _essoa vos dirige. _eço-vos ainda _erdão, mas esta minha máquina te

A humanidade ameaça perder (novamente) a sua humanidade

Em tempos de pandemia a humanidade mantém-se igual a si própria, enquanto uns cuidam e revestem de generosidade os seus dias outros destilam o preconceito e incentivam o que de pior a humanidade tem. Recentemente André Ventura atiçou a fogueira do racismo, com o seu discurso populista e ignóbil que quase já não surpreende, mas rapidamente a discussão alastrou para as redes sociais e até para alguns meios de comunicação social. Não comentei nenhuma discussão das dezenas que vi nas redes sociais, porque quanto a mim não há discussão e antes que me digam que todos têm direito à sua opinião, deixem-me lembrar que, também, todos têm direito ao respeito. Mas as ideias desprezíveis e fraturantes são assustadoras. Rapidamente quem apregoa o racismo é o mais justo e aquele que defende a igualdade é o mais ignorante, porque nem deu nada para a escola e é só um jogador de futebol. E acrescentamos preconceito ao preconceito. E assim, de forma quase insciente, vociferamos uns contra os ou

uma carta

Artur subira ao sótão de sua casa como de costume e do alto dos seus 7 anos vasculhava os baús dos avós, até que uma carta num envelope por abrir deteve a sua atenção. No destinatário, escrito com letra redondinha podia ler-se “Para o meu neto”. Artur desceu as escadas, a correr, em direção à sala onde estava a mãe. ― Mãe, mãe, olha o que encontrei. – O grito entusiasmado já não surpreendia a mãe, mas desta vez, a pequena carta amarrotada chamou a sua atenção. Era do seu avô. Abriu-a como se de um tesouro se tratasse e leu em voz alta: Caro netinho, Estás a alguns dias de nascer num mundo que passa por um período muito conturbado. Certamente quando leres esta carta já te terão falado da pandemia que ceifou a vida a milhares de pessoas de todo o mundo e que me faz, por agora, estar em isolamento neste hospital. Por cá vamos andando, muito preocupados. As notícias são tristes a assustadoras, mas a verdade é que coisas incríveis têm acontecido por aqui. E quando cresceres

Medo

Parecia escuro mas era dia Era uma dor imensa, mas o seu corpo dormente nada sentia Sentia-se só mas tinha a multidão em redor Sentia frio mas a sua pele refletia um sol abrasador Os dias passando e as noites demoradas Os meses seguidos com sensações intercaladas Era um frio pequenino lhe queimava os ossos E as suas finas esperanças ensombradas por pavores grossos E seria normal não fosse a devassidão O estado podre em que ficava o seu coração E a sua alma pérfida quase esquecida Faziam-na tremer na esperança desaparecida Era só Vivia com dó Sentia-se a cair no precipício, segura por um dedo Em todas as esquinas do seu corpo sentia medo E aquele corpo angular Entoava em coro sem par Como o orvalho a gritar E a pedir, para que o deixassem ficar.

Uma história de desamor

Ela era linda, parecia saída de um conto de era uma vez em que belas jovens são humildes e confiantes em si próprias, gratas com tudo o que a vida lhes traz. O seu ar de menina mulher, com um atrevimento envergonhado no olhar e o samba no andar despertavam as mais secretas invejosas que lhe sorriam com falsidade. Mas não era assim que ela se via, o cabelo difícil de conter, o dente desalinhado e os saltinhos do andar envergonhavam-na e, no silêncio da sua casa, chorava muitas vezes, de solidão. Tinha tanto o que os outros invejavam, como aquilo que sentia que lhe faltava. É assim, estranha, a vida. A vida corria-lhe de feição, trabalhava numa empresa como diretora financeira, ia ao ginásio todos os dias, vivia com o namorado com quem mantinha uma feliz relação desde a juventude, não fosse a sua insegurança consigo própria e iria viver feliz para sempre. Mas ela era tudo menos um caso de sucesso. Sentia-se frágil e insegura, achava-se feia e envergonhava-se do seu gingar, frut

é a hora

Esta é a hora de deixarmos de ser a nova geração de velhos do restelo. São tempos duros, e a batalha é feroz, há um monstrengo aqui e acolá contra o qual travamos esta guerra desigual. Vamos além da dor, das lágrimas salgadas que choram de saudade por aqueles que, estando perto, sentimos tão longe. Cresce o mar onde lançamos pétalas de amor e cartas engarrafadas com mensagens de amizade, de perdão e de solidariedade. Este cabo das tormentas é difícil de dobrar, mas sentimos pelas chagas que carregamos, hasteadas na proa das nossas casas, que o bojador está próximo. É a hora de, sem nos tocarmos, dar as mãos, descansar nos braços dos que amamos e suportar com firmeza aqueles a quem falham as forças. Choramos os mortos na batalha, os que agonizam nos hospitais e aqueles que sentem a saudade escorrer-lhes pelos rostos enevoados. Rezamos de joelhos cravados no chão implorando que se afaste de nós esta maldição, entregando-nos a quem tudo pode. É a hora de levantarmos a nossa vont

Da minha janela...

Da minha janela vejo o grande e velho carvalho que na sua sabedoria dança soltando gargalhadas ao deixar-se acariciar pelo vento, oiço pássaros que chilreiam chamando a sua mãe que esvoaça por entre os ramos com exímio controlo de voo. Vejo crianças, lá ao longe, que brincam no parque soltando gritos de excitação e alegria e os seus pais que estendem toalhas no chão para fazer um piquenique onde não faltam azeitonas nem morangos. Da minha janela vejo o ancião que coça a sua barba comprida enquanto resmunga com as pernas que se arrastam pela calçada. Da minha janela vejo-te a ti, meu amor, de lábios pintados e saia vermelha rodada que danças no meio da rua rodopiando embalada por uma eterna melodia… Da minha janela… era isto que veria se tivesse uma, mas a única que tenho é esta moldura riscada na pedra cinzenta por onde deixo os meus sonhos viajar, navegando sempre até chegar até ti. E, todos os dias, com uma pequena pedra pontiaguda, socalco mais cada traço desta moldura, co

Abismo

Era um abismo de luz, mais brilhante que o sol e com uma dança de cores que nem o mais incrível arco-íris poderia reproduzir. Ela temia dar o passo em direção aquela centelha de esperança, amarrada por cordas fortes que lhe cortavam os pulsos que gotejavam sangue. Os seus pés colados a um solo árido onde nunca nada iria germinar e o seu corpo inerte e olhos lacrimejantes, admiravam tal possibilidade. Era um só o passo que tinha de dar, mas era como se de um buraco negro se tratasse e nesse instante tudo voltava à sua cabeça revivendo cada pesadelo outra e outra vez. E naquele horror conseguia encontrar-se e confortar-se com a única vida que conhecia, desdenhando de si própria e da sua busca pela felicidade. Voltou para trás, afastando-se daquele abismo de luz. Para quem tem medo até a esperança paralisa.