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a viagem... a triste viagem da esperança


Chegaram à praia durante a noite. Agora restava-lhes esperar na incerteza se viriam. As barrigas roncavam de fome, mas o medo quase os fazia esquecer o quão famintos estavam. A comida terminara ontem. A mãe guardava ainda um bocado de pão duro, em segredo, que esperava dar-lhes quando chegassem ao barco. O bebé chora, e ela dá-lhe a mama seca, na esperança que ele se cale. Ocultos pela noite, aconchegam-se mais uns contra os outros. Deixaram parte da bagagem durante a viagem, e agora só a mochila da mãe e o saco que o irmão mais velho traz. Também o pai se perdeu e ali o deixaram, na beira da estrada. A mãe chora ao recordar o seu amor, o seu único amor. Mas não pode ter saudade quando o medo é o seu principal sentimento. Várias famílias ali estão e outras continuam a chegar. Amontoam-se num estranho silêncio. Trocam olhares numa estranha cumplicidade. Partilham os mesmos medos e as mesmas esperanças. Passaram-se algumas horas e apenas os mais novos dormiram. Já estará quase a amanhecer, quando ouvem um ruído vindo do mar. Todos ficam alerta com os olhos muito arregalados. Os adultos a envolver as crianças em abraços fortes que não têm. Chegou. Suspiram de alívio, um alívio que não deveriam sentir. Não é um barco é apenas um bote. Em silêncio aproximam-se do homem de ar severo que comanda o bote, entregam-lhe o dinheiro envolto num velho pano. Ele abre, conta as notas e olhando para aquela mulher diz-lhe:

- Temos muita gente hoje… o preço subiu.

Sem pensar, a mulher coloca a mão no saco que o filho mais velho transporta e tira de lá dois telemóveis. Entrega-os ao homem que os segura enquanto faz sinal com a cabeça para avançarem, não sem antes dizer:

- Não era bem nisto que estava a pensar, mas também serve.

Dito isto aperta a nádega esquerda dela. É indescritível o que ela sentiu, uma dor mais forte que aquela provocada pela faca que lhe trespassou o braço, dois dias antes. Mas nada disse, e apenas se permitiu soltar uma lágrima, que logo conteve. Sentada no bote, rodeou-se dos três filhos, abraçou-os e suspirou.

Tinha pouca fé naquela viagem, mas era a única coisa que lhe restava. Tinham conseguido ficar durante muito tempo no hospital, como ela e o marido eram médicos foi-lhes permitido levar os filhos para lá, assim permaneciam todo o tempo no edifício. Mas agora que fora bombardeado, e toda a cidade destruída, nada mais os faria ficar ali. Depois da morte do marido, Alisha pensou em desistir, a morte seria a melhor solução para si. Olhou para os filhos e pensou que os poderia matar sem dor e acabar com o sofrimento. Preparou a solução no frasco, mas não foi capaz de a retirar. As crianças ainda sorriam. E sorrisos em tempo de guerra valem por tudo. Fez-se ao caminho, mas trazia na mochila o preparado letal. Não iria permitir que fizessem mal aos filhos. Preferia a morte suave.
Naquelas poucas horas de viagem, o dono do bote não tirou os olhos dela. Alisha mexeu na mochila colocando a solução letal num local de muito fácil acesso. Não iria hesitar. O silêncio em que seguiam apenas era cortado pelo som do bote a cortar o mar. Já estava a nascer o dia quando chegaram ao destino. O bote parou ainda em mar e o homem rude gritou-lhes “- Saiam e corram.” Alinha atirou os dois filhos mais velhos para o mar e saltou logo de seguida com o bebé ao colo, queria sair dali o mais rapidamente possível. O homem ainda lhe dirigiu em tom asqueroso :” - oh minha linda, a ti levava-te para casa. Tu precisas de um bom tratamento…”

Alisha apressou os filhos que seguiam a caminhar com dificuldade pela água à sua frente. No meio daqueles atropelos caiu e foi levantada por uma mulher de olhar doce, que lhe sorriu e a ajudou a chegar à praia.

- Os meus filhos?? – gritou Alisha, num grito mudo que não lhe saiu.

A mulher doce, mesmo sem a perceber, mostrou-lhos, estavam ao lado dela. Tinham conseguido atravessar e Alisha recebia o primeiro gesto de carinho desde que partira. E ali, naquela praia permitiu-se chorar e misturar as suas lágrimas com a água salgada.

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Texto: Susana Silva
Imagens: pixabay

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