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o encontro


Aninhada na berma do passeio sentia a chuva que caia e lhe escorria pela pele. Queria misturar-se naquele lamacento espaço e desaparecer por entre as pedras da calçada. Tudo terminara minutos antes. Perdera o homem da sua vida, o seu trabalho e o seu sonho. Com os joelhos encostados ao peito ardia num sofrimento infinito. Era o cair da noite e a luz na cidade era parca. As pessoas corriam tentando fugir entre as gotas da chuva e ela deixava-se ali, inerte. Até que um trovão assustou de tal modo um pobre homem que ele tombou em cima dela. Ela suportou o peso daquele corpo com o seu próprio corpo e elevou-o. Ao levantar os olhos ela vê um pobre e sombrio homem, muito aprumado vestia fato e chapéu preto, os óculos molhados pela chuva e uns pingos de chuva a escorrer pelo bigode.
- Queira desculpar-me, minha menina. – Dizia enquanto estendia a sua mão para ajudar a levantá-la.
Ela correspondeu e ali frente a frente com ele olhou-o nos olhos inquietos.
- Permita que lhe ofereça um chá, com esta chuva… está toda encharcada.
As palavras sucediam-se e qualquer coisa de místico fê-la segui-lo. Cambaleava ligeiramente ao andar.
Sentados na mesa junto à janela, ele dirigiu-se novamente para ela:
- Para lhe agradecer o amparo, numa queda que teria sido vertiginosa permita-me que lhe faça algumas questões.
Ela admirava aquele enigmático homem, que freneticamente retirava um caderno na pasta molhada.
- A sua data de nascimento… o local onde nasceu…
Ela respondeu e ele, sem tirar os olhos do caderno começou a rabiscar como se estivesse em transe. Ela ainda lhe perguntou o que estava a fazer, mas ele não a ouviu.
Passado algum tempo, ele levantou a cabeça e apontando para o caderno, olhou-a e disse-lhe:
- Está aqui… A menina está destinada a grandes feitos. Feliz de quem tem um destino como o seu.
Ela, lembrando-se do fim que recentemente vivera, rompeu em lágrimas, um dilúvio maior que o que caia do lado de fora da janela.
Face à perplexidade daquele homem ela explicou como terminara todo o seu sonho de se tornar uma senhora de Lisboa, como tivera que abandonar a matemática que tando adorava. E num infantil discurso, do alto dos seus 19 anos desbravou um périplo de sentimentos refletidos em palavras quase inócuas sobre a morte anunciada dos seus sonhos e o seu fim abrupto como ser.
Aquele homem olhava-a por entre os óculos, ainda embaciados.
- Minha querida menina. Estou certo que o destino escreveu certo por entre linhas tortuosas. Veja aqui – dizia apontando para o caderno – vejo que ficará na história deste pobre país que desconhece a vossa tamanha graciosidade. O sonho é o que temos nosso. Matar o sonho é matarmo-nos…

 Eu sou o Fernando e a vossa graça?
- Ofélia, - responde-lhe ela, enquanto o vê a pegar no caderno e em mais um estado de transe escrever desenfreadamente.



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Texto: Susana Silva
Imagem: pixabay

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