Avançar para o conteúdo principal

A dança



A música fazia-se ouvir por entre a porta entreaberta. Uma melodia de bailarico misturada com risadas e gritinhos. Ele, sentado no seu cadeirão olhou-a com amor. Ela dormitava, deitada naquela cama de sempre, alheia a tudo. Pela frecha da porta a luz amarela que entrava era interrompida por sombras humanas das pessoas que passavam naquele corredor com passos apressados. Ele esticou-se para tocar na mão da sua amada, mas quase que caia do cadeirão, pelo que depois de um suspirou, recostou-se contentando-se com a visão perfeita que acolhia nos seus olhos. Sabia que por detrás daquelas pálpebras cerradas, uns olhos azuis cheios de vida emanavam a felicidade de uma vida que parecia jazer naquele inerte corpo. Ela parecia sentir-lhe os pensamentos porque sorria, marcando ainda mais a sua cara engelhada pela vida. Tantas engelhas felizes e até a cicatriz da testa, feita pelo filho António que, com os seus três anos, pegou num copo e partiu-o mesmo no meio da testa da mãe. Que aflição que foi. Que saudades. Que sorriso desperta no rosto daquele homem.
Ele segurava a cabeça e quase nem se apercebera que ela abrira os olhos. No meio daquele quarto a média luz, dois faróis azuis iluminavam toda a vida daquele homem. Ela olhou-o com uma lucidez que há muito ele não lhe reconhecia, sorriu-lhe e suspirando desfaleceu… Ele, atordoado, lançou-se na sua direção e ainda lhe conseguiu alcançar a mão que pendia da cama. Estava quente e ele beijou-a com lágrimas. Rezou a Deus que o levasse naquele momento. Deus fez-lhe a vontade, ajudado pelo hematoma que fizera na queda do cadeirão.
Partiram felizes e serenos no cumprimento de uma vida feliz. Partiram de mãos dadas ao som da mesma música de bailarico que os uniu. Partiram, mas ficaram nas gentes que ajudaram a construir.


-----
Texto: Susana Silva
Imagem: pixabay

Comentários