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dia da mulher



Tatiana liga para o restaurante, o mesmo onde jantou no dia 14 de fevereiro com o namorado, a confirmar o número total de pessoas.
- São 9 pessoas. E já agora posso já reservar mesa para três para o dia do pai?
Era já hora de sair do trabalho e Tatiana segue para o cabeleireiro onde tinha já marcação. Aproveitou para retocar as unhas e foi para casa para se arranjar, gostava de ser uma boa anfitriã e, por isso, queria ser a primeira a chegar ao restaurante. Vestiu um vestido justo  em lantejoulas num degradé de tons rosa que comprara especificamente para a ocasião.  Maquilhou-se e olhou-se ao espelho poderosa, pronta para comemorar o dia da mulher.
Foi, como era o seu desejo, a primeira a chegar ao restaurante e conduzida à sua mesa, no meio de tanta outras. Rapidamente pode partilhar o seu entusiasmo com a chegada da Luísa. Logo depois chegaram a Ana, a Júlia e a Vera juntando-se-lhes a Marta e a Célia. Ficavam a faltar a Telma e Raquel.
Sentaram-se à mesa na expectativa de que a celebração do dia da mulher fosse inesquecível e todo o ambiente no enorme salão era de entusiasmo. Por todo o lado mulheres trocavam elogios e abraços, com rostos sorridentes e semblantes aparentemente felizes. Estavam já a servir as entradas aquando da chegada da Telma e da Raquel.
Sentadas à mesa soltavam gargalhadas comprovando a sua felicidade em ser mulher. Num desses momentos um copo cai estilhaçando-se no chão. Em resposta inata ao som Luísa fica inerte pois o som fá-la recordar a bofetada que recebera no dia anterior. Discutia com o seu marido, que discordava da sua ida ao jantar, num momento de descontrolo o João esbofeteou-a, arrependendo-se logo de seguida, desfazendo-se em mil desculpas. Luísa continuava a tentar convencer-se a si própria que fora um episódio isolado, mas a verdade é que sentia que o marido se tornava cada vez mais violento, e descontrolado nas discussões, cada vez mais frequentes, acerca das suas saídas e das roupas que ela escolhia. Ainda por cima estava grávida, era um segredo só seu, que ainda não tivera condições de partilhar com o marido.
Ao seu lado Ana fazia contas à vida, pois vira, pela segunda semana consecutiva um emprego rejeitado, não pela sua incapacidade, mas por ter dois filhos pequenos que "iriam adoecer com frequência, e por isso a mãe iria faltar também com frequência". Este argumento que ouvira revoltava-a, não se sentia mais incapaz por ter dois filhos pequenos, pelo contrário, mas a verdade é que a sua condição de mãe estava a protelar a sua saída do desemprego.
Estes pensamentos introspetivos e segredos bem guardados, intercalavam-se com conversas sobre vidas felizes e brindes à felicidade em ter nascido mulher.
Num desses instantes Júlia perdeu o seu sorriso ao lembrar que o seu estado de graça lhe estava a proporcionar momentos pouco felizes. Nessa tarde fora chamada ao gabinete do seu chefe que lhe perguntara: "- quanto tempo estará de licença, 1 mês?" ao que ela respondera que estava a pensar ficar o tempo todo. O chefe na sua cadeira de couro relembrou-a da sua situação precária e da possibilidade de outros colegas lhe ficarem com os clientes. Júlia estava agora entre a espada e a parede, entre a felicidade da gravidez e de ser mãe pela primeira vez e a necessidade de trabalhar tendo que deixar o seu bebé tão pequeno, o que lhe parecia desumano para ambos.
Eram também sobre trabalho os pensamentos de Vera que já no fim da sua licença de maternidade recebera, no dia anterior, um telefonema da empresa a proporem-lhe mudança do departamento financeiro para o de recursos humanos. À sua relutância em aceitar ouviu a resposta que era a única oferta que tinham para lhe fazer porque o seu posto de trabalho iria ser extinto. Soubera por outra colega que, ter optado por uma licença de maternidade de 5 meses e férias a seguir, fora causa de algum azedume na empresa.
Naquele instante começava a animação, um grupo de três homens com camisas entreabertas que deixavam antever os seus corpos musculados tomavam conta do palco tocando e cantando músicas do conhecimento de todas. Muitas foras as mulheres que logo se dirigiram para a pista de dança. Não foi o caso de Marta cuja situação a fez recordar a mensagem recebida no fim de semana anterior, do seu superior hierárquico na empresa, assediando-a, agora que soubera do seu divórcio. Na mensagem referia-se à sua beleza e ao vestido amarelo que levara na sexta feira, convidando-a para passar um fim de semana na Comporta para tratar das feridas do seu coração e "quem sabe algo mais". Ignorara a mensagem mas sentia-se enojada e ferida na sua condição.
Célia estava também pouco disposta para festas. Pouco antes do jantar recebera a informação que não iria ter aumento, e por isso via caída por terra a sua esperança de ganhar o mesmo que um homem pelo seu trabalho. A lei fora aprovada recentemente, acolhida com euforia pelos especialistas do direito de género, mas para Célia não era aplicada porque "o seu salário já é suficientemente alto". Como única diretora de departamento mulher era a que tinha um salário mais pequeno justificado de imensas formas. Para Célia era só mais do mesmo, continuar a fazer mais do que um homem para receber menos, e a revolta desta distinção de género consumia-a.
Já Telma, que chegara atrasada, estivera a deixar o jantar pronto para os três filhos e para o marido que iria dar-lhes o jantar e adormecê-los, ficando certamente a dormir. Os seus pensamentos eram ocupados agora pelas tarefas que ainda a esperavam quando chegasse a casa ainda tinha que estender a roupa, que deixara a lavar na máquina, preparar a marmita para si e para o Chico, que trabalhavam no dia seguinte,  e as mochilas dos três meninos que iam passar o fim de semana em casa dos avós. Esperava por isso, com alguma angústia, o momento para sair sem causar interferência no momento feliz que as amigas estavam a partilhar.
Raquel estava muito incomodada com tudo o que via. Muito ciente da condição feminina fora ao jantar apenas porque a sua outra opção era ficar em casa, só. Era de todas as mulheres da mesa a mais independente, sempre pusera a sua profissão à frente de tudo, e agora olhando para trás carrega um arrependimento, não das escolhas mas por ter de escolher, apenas por ser mulher. Trocou um casamento por uma ida de três anos para o Japão, e um filho que não deixou nascer por uma promoção na mesma empresa que a despediu pouco tempo depois. É de todas a que mais sucesso tem mas a mais só, a mais alegre mas a mais revoltada. E esse sentimento reporta-se também no dia da mulher, que para si deveria ter um significado mais profundo do que "umas jantaradas e uns gajos a insinuarem-se sexualmente". Deveria ter mais sentido do que mensagens de felicitações no Facebook para todas as mulheres, que sofrem apenas por terem nascido mulheres. Mal sabia ela, que ao seu lado tinha tantas dores femininas.
O jantar estava a terminar. Com o café o restaurante oferecia uma rosa a cada uma das mulheres da sala, "parabéns por ser mulher, feliz dia da mulher". E, após a despedida, cada uma voltou para a sua vida de mulher com tantas feridas e dores apenas por serem mulheres.
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texto: susana silva
imagem: pixabay

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