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A Carta

Olá a todos,
Se estais a ouvir esta carta alguma coisa não correu muito bem, ou talvez tenha sido melhor assim. Os últimos tempos foram duros, sofri e senti que muitos de vós sofreram ao meu lado. Mas escrevo-vos porque até no meu sofrimento fui feliz, porque vos tive ali, ao meu lado quando precisei, ausentando-se quando vos pedi. Certamente estranhareis esta minha vontade de que ouvisses esta carta no meu funeral. Os mais próximos conheciam este meu desejo, estou certo que o fazem cumprir com serenidade no coração.
Eu deixei de viver, mas a minha vida não chegou ao fim. A prova disso é que estais aqui, entristecidos em volta deste meu corpo, já inerte. Mas afastai essa tristeza. Vivi feliz uma vida dura em que sobrepus sempre as coisas boas às mais nefastas que me foram aparecendo no caminho. Estendi as minhas mãos até onde pude, caminhei com os meus pés nos caminhos por onde tive de ir. Abracei com os meus braços muitos de vós. Senti esse abraço hoje.
Lembrem-se de mim, das vezes que ri. Manuel, meu mais pequeno a amor, mesmo que já passes dos trinta, meu companheiro de aventuras. Tornaste-te um homem de que muito me orgulho, um excelente pai, marido e filho. Margarida minha eterna princesa, os teus abraços sempre foram os melhores, levo comigo os teus segredos guardados no meu coração. Amigos, hoje não vos entristeceis, recordai como fomos felizes.
Hoje não é dia de choro, apenas de saudade, de uma saudade boa que marca os nossos dias, as nossas horas e nos coloca um sorriso no rosto, talvez até a vontade de soltar uma gargalhada. Sim? Alguém? Não se inibam por estarem numa cerimónia fúnebre ficarei feliz por saber que fostes feliz comigo. Jorge, o nosso pinheiro ainda crescerá em Paris? Miguel achas que já saberei mudar um pneu? Fui tão feliz. Chorei de rir tantas vezes. São essas a lágrimas que vos permito hoje. Fazei-me permanecer vivo nas vossas memórias, nas vossas histórias. Sei que estão cá todos os que importam. E eu estou feliz.
Ana, meu amor, amo-te tanto como no dia em que te pedi em casamento. Casarias comigo, hoje, novamente? Eu casaria contigo e teria envelhecido ao teu lado como fiz. Choraria as tuas lágrimas e viveria cada alegria tua, como se fosse minha, como fiz. Foste a melhor mãe, companheira e amiga. Limpa essas lágrimas, dirige para mim a luz do teu sorriso. O mais belo que conheci. Não poderei segurar o teu rosto para adormeceres mas, fica certa, que segurarei o teu coração. Senti-lo-ás.
Bem, chegou a hora do meu silêncio, mas mantei sonoros os meus projetos que são agora vossos. Cuidai uns dos outros, dos meus meninos da instituição, da rua e dos hospitais. Distribui sorrisos, abraços e palavras de conforto. Construí pontes, sempre pontes não muros. Construí e cuidai das nossas casas, escolas e lares. Tudo está nas vossas mãos.
Obrigado a cada um de vós. A minha gratidão à vida é imensa. Que vida tão vivida a minha. E se, em algum momento ela vos serviu de algo, então valeu a pena.
A cada um de vós, desejo-vos serenidade no coração, sorrisos no rosto e mãos disponíveis.
Um abraço de alma inteira,
Antero
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Texto: Susana Silva (para o blog páginas partilhadas)
Imagem: pixabay

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