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O espelho

Olho-me calmamente ao espelho… o que vejo eu?
Dedadas, impressões digitais, um canto estalado e um espelho mágico inanimado. Apaixonei-me por ti, caro espelho, naquela feira de velharias, achei-te perfeito para o meu quarto. Quando cheguei a casa lá te coloquei no sítio que por ti sempre esperou, mas naquela noite não consegui dormir. Mudei-te para o corredor, depois para a sala e agora estás escondido atrás da porta, na despensa…
– Espelho meu, espelho meu, há alguém mais belo do que eu?
E no seu silêncio a resposta óbvia saída de um conto de fadas…
Qrshhhhhhh…. Qrssssssss
– Oh, o que é isto? Parece estática…O espelho é um velho rádio a sintonizar?
E num instante um estranho e pálido rosto aparece naquele baço espelho.
– Finalmente, pá! Estava a ver que nunca mais ninguém dizia o raio das palavras mágicas. Mas não leem histórias?
Eu entrei claramente em choque e fechei a porta da despensa com um grito, deixando lá dentro o espelho a falar sozinho. Não, não pode ser. Um espelho não fala, por isso enchi-me de coragem e espreitei pela porta que entreabri. Lá estava ele a olhar para mim e a tagarelar… Voltei a gritar e a fechar a porta. Mas o inesperado e surpreendente acontecimento não me deixava continuar a minha vidinha sossegada.
– Podes não voltar a fechar a porta?!? Que fica aqui um escuro do caraças. E eu estou farto do escuro. – resmungou o rosto dentro do espelho
– Desculpa… – balbuciei, sem que ele me tenha prestado atenção
– Então em que reino estou agora? A rainha já bateu as botas? Com as botas bateu-me ela muitas vezes, aquelas botas imundas que ela usava quando ia, às escondidas, a casa do caçador. Tu não tens ar de rainha… aliás isto não parece nada um castelo, tão apertadinho… gosto de espaço.
O espelho continuava uma lengalenga interminável, do tamanho da minha admiração.
– Ora bem, diz-me lá o que queres saber? Se és a mais bela? Ora assim de repente, parece-me que a resposta pode ser pouco simpática. Talvez seja melhor perguntares outra coisa.
– Quem és tu? – gritei eu, para me fazer ouvir.
– Quem sou eu? – inquiriu surpreendido – Dessa eu não estava à espera. Eu sou o mais famoso, mais incrível dos espelhos de todos os tempos, de todas as histórias, de toda a terra do sempre e do nunca. Em mim refletiram-se as belezas da rainha e da Branca de Neve, passei uma temporada na casa dos anões, que depois foi comprada pelo monstro que me levou para o seu castelo. Ali conheci a doce Bela, que paciência teve aquela rapariga, o monstro era insuportável. Entretanto um viajante comprou-me ao monstro e ofereceu-me à sua doce filha Cinderela, foi nessa casa que estive mais limpinho que nunca, mas ela nunca falou comigo. Quando casou com o príncipe e foi viver para o castelo a madrasta vendeu-me juntamente com outras quinquilharias. Foi num mercado que o Aladin me encontrou, andei pelas Arábias e fui até à China onde vi, à minha frente, a Mulan transformar-se num soldado. Conheci a rainha Elsa, mas o único que me falava era aquele grande maluco do Olaf. Acabei na Índia, onde um senhor chamado Vasco da Gama me trouxe para este país. Foi horrível. Uma viagem de barco imensa, interminável, enjoei o caminho todo. Fiquei esquecido no convés e fiz mais umas quantas viagens. Já em Lisboa acabei no quarto da Rainha Maria I, com quem falei várias vezes, o que lhe valeu o estatuto de louca. Depois…
Eu ouvia atónita tal desenrolar de histórias em que a ficção se parecia misturar com a realidade e acima de tudo com a loucura. A dada altura o discurso termina com:
– …e agora estou aqui.
– Ok então… vamos lá.
Enchi-me de coragem. Se era para perguntar teria que ser em grande. Inspirei e soltei a minha questão:
-Espelho meu, espelho meu quais são os números do euromilhões?
Qrshshshshshsh. Qrshshshshsh
Estática outra vez.
Apagou-se.

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Texto: Susana Silva (escrito para o projeto páginas partilhadas)
imagem: pixabay

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