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o selo

Aquele selo, toscamente colado, atraiu a sua atenção. Há horas que arrumava o sótão de casa da avó. As obras iriam começar em breve, e Ana perscrutava tudo com um sentimento de saudade pela vida passada, as fotografias dos seus pais, que há muito tinham partido pelo mundo para não mais voltar deixando-a com a sua avó que sempre a cuidara com toda a dedicação e o maior amor que Ana conhecera. No meio de um amontoado de cartas, onde Ana procurava referência aos seus pais, para na letra deles os poder, algum dia, compreender, encontrou aquela carta com um selo desenhado com a imagem perfeita do seu rosto. Inicialmente assustada, Ana abriu o envelope e leu uma breve carta:
“Amélia, meu amor,
 parto esta noite para um triste destino longe de ti. Não mais ouvirás a minha voz, mas a tua ecoará para sempre nos meus ouvidos. Não mais sentirás o meu sabor, mas guardo o teu do último beijo que me deste. Não mais sentirás a minha pele, mas será o calor da tua que recordarei e a força que me moverá. Não mais me verás, e eu sempre verei o brilho dos teus olhos que serão a minha candeia. No teu caderno, sobre o qual escrevo esta carta, derramo as lágrimas da minha angústia por ter de te deixar. Nas palavras que carrega cada folha irei sempre encontrar-te e encontrar-me em cada linha que escreveste.
Parto hoje, para não causar mais sofrimento, na certeza de que do sofrimento não poderei nunca fugir. Mas se tenho de sofrer que seja pelo imenso amor que sinto por ti, que seja pela saudade que te tenho, que seja porque um dia foste minha.
O mar crescerá entre nós, o frio tomará conta da minha vida.

Amar-te-ei sempre meu eterno amor, minha amada Amélia.
Um beijo do sempre teu,
António.”

A carta não estava datada, era sem dúvida uma carta de amor para a avó, mas não era do avô. Ana levou a carta nessa tarde na visita diária à avó no lar onde se encontrava. Há vários dias que pouco falava e a memória de pouco lhe valia. Ao chegar pousou a carta em frente à avó, com o selo bem visível, fechada, sem nada dizer. Logo os olhos da avó Amélia brilharam e um sorriso tomou conta do seu rosto, pegando com esforço na carta e aproximando-a do seu peito como que abraçando aquele velho papel. Ana olhou-a com compaixão e admiração por tão grande amor e por reconhecer novamente a avó de sempre.
– Era do teu avô! – disse a avó Amélia.
Ana sorriu, admitindo a confusão da avó, mas não contrariando, conforme conselho médico.
– Era do teu verdadeiro avô. Vou-te contar a história mais bonita, aquela que me faz sonhar.
A Avó parecia recuperada, a sua voz mais jovial e o seu modo de conversar embalavam Ana que ainda não estava a apreender a verdadeira consciência do segredo que estava prestes a descobrir. A avó continuou:
– Enquanto era casada com o teu avô Joaquim, veio um rapaz trabalhar para as minas, chamava-se António. Rapidamente se tornou amigo do avô e começou a frequentar a nossa casa, amava a poesia, era um homem inteligente, conversador, apaixonante. Admirava aquilo que eu escrevia, ouvia-me… foi o grande amor da minha vida, esse selo é desenhado por ele, fazia-o sempre, desenhava-me no selo das cartas que me entregava às escondidas. – entristecendo-se continuou –  esse amor rapidamente foi descoberto pelo teu austero avô, que nunca mais me permitiu escrever, proclamar e quase me fez deixar de pensar poesia. – Amélia sorriu novamente exalando uma divina felicidade e apertando a carta contra o peito – O António partiu mas deixou em mim a tua mãe. Foi o meu amor maior o António…
Ana ouvia admirada não conseguindo processar tanta informação. A avó suspirou soltando uma lágrima pelo rosto e não mais voltou a falar.
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Texto: Susana Silva (escrito para o blog páginas partilhadas)
imagem: pixabay

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