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Eu nasci à sexta feira




“Eu nasci à sexta feira, com barba e cabeleira, mais parecia um anticristo. Tarantantam…”
Alfredo descia a ladeira de sachola ao ombro cantarolando e animando todos à sua passagem.
Boa tarde, Ti Nel! ― dizia, enquanto respeitosamente levantava a boina axadrezada que trazia na cabeça.
― Senhor prior António, a sua bênção. ― fazendo uma vénia ao velho e barrigudo padre da aldeia.
Eram assim os fins de tarde mais animados  em Piurça, uma aldeia no meio da serra, onde nem Judas passou para lá perder as botas. Os mais jovens haviam fugido para as grandes cidades, a maioria para o Porto, mas não Alfredo.
Alfredo gostava da lavoura e habitava na casa que fora dos seus pais, Deus os tenha, cultivando uma porção de terra, que também lhe pertencia, junto ao rio. Juntava-se às merendas nos arredores, debaixo dos grandes carvalhos que por lá existiam em grande quantidade, e ajudava todos na aldeia em troca de uma sandes de presunto ou de umas rodelas de chouriço fumado.
― Ui, Ti Micas que este é forte. Deixou o lume pegar para fazer tanto fumo? ― afirmava ao comer um chouriço tão fumado como um pinheiro ardido.
Mas, naquela tarde, a música era mais alegre e o ritmo mais intenso e à melodia, Alfredo, acrescentava uns passos tortos de dança.
― Deve vir da tasca do Zé ― afirmavam com certeza os que o viam.
Mas o que embriagara Alfredo fora um néctar divino que ninguém podia produzir. Era amor, que incendiava o seu corpo e o fazia rodopiar, ainda que tentando equilibrar-se para não tombar. A Rosa voltara daquela formação de costura que fora fazer a S. João da Madeira e estava mais bonita do que nunca.
― Oh Rosa, arredonda a saia…
E a Rosa rodava o estômago só de olhar para Alfredo sentindo-se nauseada. O que rodava o seu coração era o Padre Júlio que fora recentemente mudado de freguesia, quando a diocese soube que um rabo de saia o poderia levar para o caminho do pecado.
Pobre Rosa de coração destroçado.
Pobre Alfredo de coração despedaçado.
Mas as voltas da vida são maiores que roda da saia da Rosa e num futuro próximo o Padre Júlio casará o Alfredo com uma Rosa, não costureira, mas a tecedeira, que será a eterna dona do seu coração. E a Rosa, coitada, a suspirar pelo Prior, vai acabar sozinha, uma velha rezingona com uma grande verruga no nariz. Foi assim que a vida quis.

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