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uma carta




Artur subira ao sótão de sua casa como de costume e do alto dos seus 7 anos vasculhava os baús dos avós, até que uma carta num envelope por abrir deteve a sua atenção. No destinatário, escrito com letra redondinha podia ler-se “Para o meu neto”. Artur desceu as escadas, a correr, em direção à sala onde estava a mãe.
Mãe, mãe, olha o que encontrei. – O grito entusiasmado já não surpreendia a mãe, mas desta vez, a pequena carta amarrotada chamou a sua atenção. Era do seu avô. Abriu-a como se de um tesouro se tratasse e leu em voz alta:
Caro netinho,
Estás a alguns dias de nascer num mundo que passa por um período muito conturbado. Certamente quando leres esta carta já te terão falado da pandemia que ceifou a vida a milhares de pessoas de todo o mundo e que me faz, por agora, estar em isolamento neste hospital.
Por cá vamos andando, muito preocupados. As notícias são tristes a assustadoras, mas a verdade é que coisas incríveis têm acontecido por aqui. E quando cresceres quero que conheças toda a história, principalmente a mais bonita. Porque minha querida, posso garantir-te que foi dos períodos mais assustadores para a humanidade, mas também aquele onde a humanidade mais se demonstrou como tal. E posso contar-te que, neste momento, há super-heróis e emergir das profundezas da terra. São fortes como a rocha e, não fosse o temor que escondem no seu coração, diria que se sentem invencíveis.
Há heróis que saem de casa pela manhã, munidos de uma mala com roupa essencial, para a possibilidade de não voltarem, pois na tentativa de proteger os outros podem eles próprios serem infetados e querem proteger os seus. Dão o corpo ao vírus como soldados dão o corpo às balas numa guerra desigual em que, neste caso, o menor exército tem mecanismos mais eficazes que ainda não conseguimos controlar. Mas lá chegaremos, todos sabemos. Só precisamos de mais tempo e de, durante esse tempo, nos mantermos saudáveis.
Há heróis que colocam uma máscara no rosto e saem para as ruas para perscrutar com serenidade, para distribuir produtos pelos supermercados e farmácias. Há outros que cozinham e oferecem a comida gratuitamente. Há aqueles que entregam comida à porta dos mais frágeis e dos que oferecem o seu consolo espiritual através da tecnologia.
Há pais que calçam as suas pantufas de super-herói e que trabalham, agora, em casa, tomando para si todas as tarefas diárias, desde as refeições à limpeza e são, ainda, professores dos seus filhos, encontrando tempo para brincadeiras e também para telefonemas que cuidam com afeto. Há outros que, tendo que ir trabalhar, calçam botas de biqueira de aço e apetrecham-se de uma coragem que às vezes parece querer fugir-lhes.
Há heróis de pijama que por detrás de um ecrã partilham histórias que nos fazem rir, músicas que no embalam, que dão colo aos mais sós e amparo aos mais tristes. Que criam estratégias e mil formas de entreter os outros na tentativa de minimizar os danos deste isolamento.
Caro netinho, este teu e meu Portugal é povo de heróis do mar, heróis da terra, heróis dos hospitais, heróis das ruas, heróis das salas e heróis dos sofás. Atiram-se sem medo à saudade do mais querido Ansião, ali ao pé de casa, que cuidam com distância, contêm as lágrimas e armam-se com sorrisos rasgados. Neste querido Portugal nunca o distanciamento nos fez tão próximos.
Não estamos bem. Mas haveremos de ficar.
Amo-te muito e anseio por te ter nos meus braços,
Avô Artur

No final da leitura a mãe não pode conter as lágrimas e a voz embargada quase a impediam de explicar ao pequeno Artur, que tendo pegado na mão da mãe ansiava preocupado pela explicação.
Foi o meu avô que escreveu. Nunca o conheci… começou por explicar, mostrando dificuldade em conseguir encontrar as palavras certas morreu pouco antes de eu nascer e esta é a história mais bonita que alguma vez ouvi. Sabes, meu querido, tantas vezes quis ouvir uma história contada pelo meu avô… ouvi agora… e foi a melhor história de sempre

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